sexta-feira, 4 de maio de 2012

Das Marcas Que Carregamos


Subitamente se apercebeu novamente sozinho com os seus pensamentos. Sedento por qualquer indício que lhe pudesse fazer lembrar os sentimentos bons das pessoas, recorre —como lhe era costumeiro — a seu pequeno acervo portátil de lembranças cantadas. Senta-se à beira da calçada, liga seu “áudio player” e, enquanto o som em seus ouvidos acessava suas memórias e atingia os seus desejos mais profundos de final feliz, ele observava do alto o movimento dos carros e pedestres na avenida.
Não crescera muito, afinal. Quase se lamentou por isso. Acontece que a vida foi lhe preenchendo a mente com dramas tão maiores que quase nunca se lembrou de murmurar sua pouca estatura. Sua alegria, a imagem que por muito tempo teve de si mesmo, seus relacionamentos conturbados, sua falta de atenção, sua família ingerindo doses homeopáticas de um colapso inevitável... Era tudo muito denso, emotivo demais, forte demais, sofrível demais e, por algumas muitas vezes, exagerado demais.
Mas é assim que todos são, afinal, certo? Como qualquer um, ele fora costurado cuidadosamente a pequenos apanhados de forte carga emocional, amarrado a ímpetos efêmeros e a perigosas buscas por eternidade. Sua estrutura é basicamente essa, uma tentativa interminável de fazer de sua existência um prolongado último capítulo da sua série favorita. Série esta, que como todas as outras séries que começou a ver, jamais terminou, ora por falta de tempo, ora porque não tinha vontade, quase sempre por esquecimento, mas isso  não importa. Ele apenas se identificava, e isso lhe era suficiente para tomá-la para si. Fato é que era solitariamente confortante estar sentado àquela calçada mal iluminada enquanto as pessoas transitavam frenéticas logo abaixo. 

Ao passo que sua trilha sonora se misturava àquela orquestra ensurdecedora e desajeitada de buzinas automotoras, ele quase era capaz de ouvir os pensamentos daquelas pessoas. Quantos, assim como ele, estariam, à sua maneira, seja com suas próprias músicas, ou com aquele mesmo livro que sempre levam a tiracolo, ou até aquela mesma novela mexicana reprisada pela quinta vez na televisão... Quantos estariam tentando atribuir alguma intensidade a seus roteiros vitais mal escritos? Quantos se encontravam olhando para dentro de si, desamassando os papéis onde com tanto entusiasmo esboçaram os seus sonhos?
Ele, que sempre se sentira sozinho em meio a tantas aflições e hipérboles sentimentais, depois de tanto tempo, ainda que por alguns instantes, percebeu o quanto todas as outras pessoas se assemelhavam a ele. E que meio a sorrisos tão sinceros, numa visão pouco mais adiante das vidas mais perfeitas, além dos mais cortantes olhares de desprezo, há sempre alguém amedrontado e ferido tentando não cair no chão novamente.
No final das contas, era prepotência sua se julgar o único a chorar suas feridas não cicatrizadas. Certamente há muita gente lá fora contaminada por esse câncer por vezes irreversível chamado desapego, mas se ele mesmo não fora alcançado ainda, não poderia outro estar a salvo também?
Seja qual for o resultado dessa epifania, cedo ou tarde haveria de se encontrar alguma razão para tudo isso. E enquanto esse aguardado momento não chegava, ele, agora andando imperceptível e tranqüilo em meio aos transeuntes que observava, por agora cantarolava despreocupado, repetindo para si, acompanhando a melodia, que tudo isso pouco importava. Convencendo-se de que por hora ele só precisava continuar a seguir de volta o caminho de casa.